domingo, 4 de março de 2012

Testamento

            
               Ela tinha uma certeza. Certeza esta maior que a certeza da morte.
            Quando morresse queria ir se esvaindo lentamente ao som de uma melodia profunda e melancólica, percorrendo a imensidão dos horizontes e desaparecendo, desaparecendo.
             Iria sucumbir com a doçura que nunca tivera. E, por não tê-la, queria apenas que seus familiares mais íntimos e próximos a vissem dormindo o sono eterno. Fora estes, não aceitaria ser vista por ninguém em seu último leito, uma caixa grande de madeira.
          Não queria os olhares de outras insignificantes pessoas. Decididamente não os queria a olhando.  E não, a razão não era tola. Não os queria olhando por achar que eles mereciam recordar dela viva tão cheia de vida. Não! Ela não queria que a fossem olhar morta com desculpa de último adeus, quando em vida sequer tiraram alguns dias de suas míseras vidas para vê-la, e se viam, não a enxergavam.
          Compreensível somente para os entes achava estranho aquelas pessoas dando a última olhada, sussurrando palavras ao pé do ouvido, ou sei lá mais o quê, em um corpo sem vida. Perguntava-se se tal ato beirava a curiosidade, costume ou morbidez? Ora, pensava ela: Aprenda em vida a se despedir direito das pessoas. Pode ser a última vez que os veja com alma.
          Feche o caixão, berrava ela internamente. Se tiver que ser velada, que se faça com o caixão trancado. E se não houvesse ninguém, que não seus familiares, sabia que isso em nada a incomodaria. Já estaria morta mesmo. Mas a futura morta não morreria em paz se não fosse velada por seus entes.
         Que ficasse bem claro, não queria discursos inflamados de quem quer que fosse. Ela nunca fora afeita a falatórios. Palavras são só palavras. Não importava ouvir que a amavam, nem em vida precisava disso. Se a amavam ela sabia pelas atitudes diárias, não por um chulo e vazio: eu te amo.
        Quem  foi, o que fez, por quem fez, estando morta já não interessava mais. E se tivesse que importar, importaria apenas aos seus entes, e que eles guardassem na memória e no coração para mantê-la sempre viva dentro deles. Isso a bastaria.
       Mesmo morta não gostaria que seu gélido corpo fosse limpo e vestido por um estranho, mesmo entendendo ser este seu honroso trabalho.
       Queria que seu enorme e brilhoso cabelo fosse cuidadosamente penteado, dividido ao meio e colocado para frente em cima de seus enfadados ombros. No rosto uma leve maquiagem. Considerava irônico um leve rubor de blush em sua face pálida. E, embora  soubesse que seu corpo nada valia para onde ia, dizia em alto e bom som que ao menos serviria de belo banquete para as baratas.
       Sua alma chegaria ao seu destino flutuando como o sopro da brisa. E ela poderia, enfim, viver em paz.

By Aranda L'ima.

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